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25 de maio de 2008

Um verso inacabado

- Maria, você já me traiu?
A frase desce rasgando. A sensação no corpo era mais do que jorro de água fervente naquele dia. Era golpe, soluços com lágrimas mal fabricadas. Sensação de traidor farejando a própria criação. E fedia. O nível de sinceridade de Maria era algo desconhecido. Então sentiu que a perda fora somente dela. Mas ela sabia que desconhecer a traição seria pior do que nunca tê-la tocado. Queria ter com ela todos os sentimentos possíveis, bons ou ruins, que importa! Na vida havia experimentado grandes tragos da solidão e do amor, numa mescla embriagadora. Agora que seu corpo sentia os dois revolvendo-se no estômago, queria vomitá-los, mas não sabia se devia. Nada disse, fingiu ter sono e deixou seu namorado, sem explicações, como se as dele fossem mais compreensíveis, como se o silêncio dela trouxesse o consolo.
Era Maria a mais imprevisível das criaturas. Maria, nome de santa. Santa só no nome, como todas outras Marias antes da primeira. Para essa, a maior riqueza tinha tom azul. Azul de águas que levavam significado a um mundo mal acabado entre versos e areia. Sozinha, ela sentia o peso de um corpo que ainda seria maior do que era: corpo de mulher. Por enquanto, as coisas eram apenas suportáveis porque imaginava sentir nada muito diferente dos outros. Presenteava às pessoas apenas um olhar irritante e fixo que nada dizia, e que desejava horas de areia e mar, para não mais sentir o corpo em crescimento, mãos com cada vez mais linhas e olhos cheios de lágrimas.
Maria não gostava de palavras, para ela sinais de comprometimento entre um ou mais conhecidos. E como todos sempre lhe foram estranhos! Fascinava-a, mas não os desejava. Entre amigos e admiradores, os primeiros e os últimos nunca conseguiram realmente tê-la. Eles eram pequenos gestos de gratidão ao que Maria ainda não sabia. Ia então ao encontro daquele caminho de sempre, desembocando no mar.
Ansiava pela estranheza das coisas, conhecimento que só poderia vir de uma experiência solitária. Inutilidade de uma língua que para Maria era desnecessária. Nada parecia realmente doer, afinal, ela era apenas sozinha. “E que grande dor poderia trazer tão forte sentimento como a solidão?” Observava, admirada com um ambiente onde o familiar era o objeto por entre morros. Um mar que rasgava o silêncio de tudo. O som de séculos de gerações. Sensação de gritos cada vez mais altos.
Nos momentos de união dos dois solitários, existiam sentimentos e pensamentos de mudança. Maria não pensava em quanto tempo no mar tinha desperdiçado – ou apenas gasto. De chão parecia faltar, mas não havia saudades. Saiu e sentou-se numa pedra que estava no mesmo caminho que sua tristeza. Chorou pelos anos que não viu passar. Esses instantes de realidade a faziam descobrir novos sentimentos, que mais tarde talvez lhe pudessem ser úteis. Parecia que aqueles traços de vida, que Maria suportava tão frágil e delicadamente, respondiam a alguma coisa quando fora da água. Seguidora de conselhos, suposições e caminhos tão incertos. Intervalos de tempo que gastava mergulhada em idéias de nada.
Maria agia como se não feita para sentimentos grandiosos; inconstante demais para decidir-se entre dor ou felicidade. Ao menos pensamentos incompletos deixavam-na sentir-se menos culpada pelas coisas que fazia e já não explicava. Podia justificar-se menos para si. Mantinha uma consciência que não se fixava em uma só verdade, um só extremo. Seria sempre duas verdadeiras Marias. No amor e solidão, dois únicos grandes sentimentos. E a solidão era para os egoístas. Gostava de tê-la, mas o que lhe doía era o amor.
Depois do ocorrido com o único namorado, Maria sentiu que o peso do corpo finalmente correspondia ao coração. Mais madura, viu adiante um novo mar, mostrando uma cor mais fria, com textura de lama. Pensou no que dizem, que em algum lugar pode existir alguém que a complete. Pensou nisso mais profundamente. Foi assustador. Não queria alguém que a completasse, apenas que a deixassem viver.
Decidiu então dizer pela primeira vez alguma coisa que fosse realmente importante aos outros. Qualquer coisa, desde que pudesse descrever os pequenos traços de suas paixões. Maria queria gritar o que sentia pelo mar, a paixão pelos que não conhecia e por sua imobilidade ao amor, mesmo desejando-o tanto. Percebeu então que tudo sempre a tinha acompanhado desde cedo. Mas agora, pela primeira vez, precisava dizer; a mal articulada e mal explicada mulher. Sim, tudo sempre havia pertencido a ela. Então juntou uma massa homogênea de pensamentos preconceituosos, piedosos ou não, àquelas pessoas que não lhe deviam nada. Sentiu vontade de estranhos: os mesmos contornos, os mesmos gestos e sorrisos largos. Talvez fosse a dor de um amor não correspondido, tão raro entre os que o procuram.
Passavam os dias e Maria visitava o mar cada vez menos. Pensava o amor que nunca chegava, nessa dor que nunca era parte dela. Ia a pé, observando coisas que não a faziam ser. No final, sempre sobrava um mar e uma mulher. Foi dar um mergulho. O sol se punha sem nuvens e sem melancolia. Mas o mar a traria de volta, de volta ao seu lado adulto.

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